domingo, 23 de setembro de 2018







Docelina


A Docelina era da minha turma na Escola Comercial em Aveiro. Era uma miúda,como eu,mas que morava a kilometros de distância da escola...numa povoação que nem me recordo o nome. 

A Docelina vinha para a escola de bicicleta...muitos kilometros feitos para estar na escola às 8h30 da manhã. 

 Pode parecer tudo muito bonito falando assim...mas de bonito não tinha nada. No tempo bom ela chegava à escola cheia de pó e terra, de atravessar os caminhos lá da terra, mas no Inverno metia dó. Lá chegava ela, molhada até ao osso, os cabelos pingavam, as roupas podiam se torcer...e lama por todo o lado. Lembro me que os livros vinham dentro de um saco de plástico...já eram usados e ela não podia dar-se ao luxo de ficar sem eles.Por vezes a Docelina ficava num canto a chorar pela crueldade com que alguns miúdos a tratavam. Outras vezes eram os professores que ralhavam com ela pelos trabalhos que não tinham sido feitos.


A Docelina era a única da família que sabia ler...antes de ir para a escola já tinha dado comer aos animais, e mais trinta e uma tarefas que os pais lhe imponham. A escola era um luxo...e se ela queria estudar tinha que o fazer por sua "conta e risco". 


A Docelina tinha sempre a pele morena...não precisava de se bronzear numa qualquer praia...o sol castigava-a enquanto ajudava a produzir o sustento daquela casa. Pobre Docelina...


Hoje pergunto-me porque não fiz mais por ela. Eu também não tinha muito...por vezes também chegava à escola com os pés molhados, porque as minhas botas já tinham visto melhores dias. Mas a minha mãe sempre cuidava que eu fosse limpa e cuidada para a escola. Não podia ir à cafetaria, mas sempre levava um lanchinho para quando tocasse para o "intervalo grande". Apesar de ver a pobre Docelina, acho que nunca me aproximei muito porque não sabia como ajudar. Ficava ali cheia de pena dela...cheguei a falar dela à minha mãe, que sempre me respondia "E tu ainda te queixas da vida...."


Talvez tenha sido por isso que sempre procurei incutir nos filhos a necessidade de fazermos mais do que nos encostarmos à parede e ficarmos cheios de pena. Acho que incuti tanto, que por vezes eles iam mais longe do que se pretendia.. Os lápis desapareciam , porque o outro colega não tinha nenhum...o lanche não chegava porque "partilhei com o "fulano tal" porque a mãe dele esqueceu se de mandar lanche"...a professora do meu filho dizia que ele deixava os exercicios para fazer para ajudar o colega do lado...e que depois faltava tempo para fazer os dele. O meu carro parecia o transporte escolar, porque os colegas não tinham como ir para casa e chovia tanto...."a minha mãe leva te...".


Mesmo assim...sinto tanto orgulho neles. Tanto orgulho, porque aquilo que eles são e têm sempre chega para mais um...ou dois...ou três ....


Falhei contigo Docelina...mas talvez já me tenha redimido de semelhante falta ,sempre que ensino que podemos sempre ajudar mais alguém...que sempre temos suficiente para nós e para os outros...e sempre que o faço no meu dia a dia.